O medo, às vezes, carrega junto a vergonha. Foi assim comigo dia desses, quando invadi a madrugada fechando um jornal. O relógio do computador marcada 1h08. Não tinha uma alma viva na rua e todas as portas e janelas da vizinhança já estavam arriadas há pelo menos duas horas. Terminei o que tinha para fazer e comecei a desligar a luz, o ventilador e, claro, o computador. Quando meu dedo indicador se dirigia vagarosamente em direção ao pitoco do transformador, meu ouvido captou uma ruma de passos vindo em direção ao portão de casa. E antes de conseguir levar a cabeça até a janela, um ruído na grade anunciou a chegada de um gari esbaforido e exausto.
Se eu sofresse do coração, meus amigos, é certo que este blog nunca mais seria atualizado. Mas passei no teste. Olhei a figura como quem chama mentalmente alguém de filho de rapariga aos gritos e esperei o cara dizer alguma coisa. Foi então que me pediu um copo d´água. Pacientemente, atendi ao pedido. Mas em vez de trazer a garrafa, trouxe um copo apenas. Vendo o desespero do sujeito, deveria saber que uma tulipinha de chopp não seria suficiente.
- O senhor poderia me arrumar mais água, por favor?, renovou o pedido.
Dessa vez, voltei preparado. E, ao todo, o nobre homem que quase me matou de susto, derrubou cinco tulipas. No último copo, disse que ia aproveitar para tomar o remédio para dor no joelho receitado por um médico. Tirou três comprimidos da carteira, onde percebi os dedos das duas mãos engelhados (o Word disse que é assim que se escreve isso), agora fora das luvas.
Nesse meio tempo, perguntei de onde vinha. Contou-me o sujeito que começara no batente desde às 8h, a partir das avenida Campos Sales. Sozinho, passou de rua em rua juntando os sacos de lixo nas casas para que o caminhão recolhesse tudo já organizado. Estava desde o início da labuta sem água e sozinho. Cinco horas, portanto.
Admito que senti uma ponta de vergonha pelo medo da hora. Era um trabalhador cansado e explorado que só precisava de uns bons copos de água e um dedo de prosa. Mas é como meu sogro costuma dizer: “quem tem rodela tem cautela”. Grande tese. Como mantive o portão fechado, o gari passou a ser a única alma viva no meio da rua aquela hora da madrugada. Num dado momento, ouvimos, então, o ruído de uma moto se aproximar. Até então nenhum problema. Acontece que a moto foi chegando, o barulho foi aumentando e parou justamente em frente ao portão de casa. Eu já imaginava quem poderia ser, mas não disse nada para ver a reação do cara. Difícil ser preciso nesse momento, mas a cara que ele fez foi parecida com a minha, quando o vi pela primeira vez. Pensa bem: rua deserta, 1h30 da madruga e aparece um sujeito numa moto de capacete sem dizer nada.
O gari deu dois passos para trás e esperou o momento certo para correr. Com calma, o motoqueiro sacou a edição do dia seguinte da Tribuna do Norte da garupa, me passou o jornal e foi embora sem dizer uma palavra. Pensei em servir mais um copo d´água para o amigo trabalhador que quase me matou de susto, mas ele se despediu tão rápido que nem deu tempo.
É como diz o meu sogro: "quem tem rodela, tem cauleta". Pois é. Grande tese.