sábado, 7 de fevereiro de 2009

O MIJO E A MIJADA



O jornalista e escritor Ruy Castro sugeriu, hoje, num artigo na Folha de São Paulo, que as empresas fabricantes de cerveja doem, como uma espécie de contrapartida, banheiros químicos durante o carnaval do Rio de Janeiro. No texto, o biógrafo da centenária Carmem Miranda apresenta a sugestão como única solução diante da enxurrada de mijo despejado nos muros, calçadas, árvores e afins do trajeto percorrido pelos foliões-mijões. O problema teria aumentado depois que os blocos de carnaval, sumidos por alguns verões, voltaram com tudo para as ruas cariocas, mesmo sem o apoio dos governos municipal e estadual. Ruy lembra que o próprio poder público diz que não tem verba para suprir a demanda. Resumo da ópera: a rapaziada está tomando muita cerveja e, por isso mesmo, mijando cada vez mais. E como as empresas é que fabricam a matéria-prima, nada mais justo que faturar e contribuir para a limpeza da cidade.

Concordo com o Ruy Castro. Mas enquanto a coisa não anda, aqui do meu canto fico imaginando a cara de satisfação da turma da limpeza ao saber da notícia. Sim, porque se o governo não tem como arrumar dinheiro para botar o bloco dos banheiros químicos na rua, numa época em que a bexiga da galera está pedindo qualquer canto de muro, quem acaba pagando o pato é a turma da vassoura. No máximo, a Glória Maria vai atrás daquele mesmo gari que todo ano aparece na Globo feliz da vida passando o rodo na Marquês de Sapucaí. Só que a regra é diferente. E como o secretário de limpeza urbana do Rio de Janeiro vai querer tudo limpinho e bonitinho para mostrar para o patrão, pegue água e sabão. E, claro, sem hora extra. Resumo da ópera: o folião mija na rua, mas quem leva a mijada é o bloco dos Garis.

O NEGÃO LADRÃO DE CHAPÉU



As noites de sexta-feira nunca mais foram as mesmas depois de devidamente consolidada a roda de samba do Arquivo Vivo na Travessa do Samba, ali em frente ao Bar de Fátima, na Cidade Alta. A quantidade de bebuns, poetas e malucos que vêm dando o ar da graça por ali não me deixa mentir.

A última pérola foi dita em alto e bom som na última sexta por um desses doidos que fazem questão de aparecer. Lá pelas tantas, depois de encher o saco de meio mundo de gente que ouvia e curtia a roda tranqüilo e numa boa, o nobre rapaz maltrapilho e alcoolizado pede a vez para incluir um samba no repertório do Arquivo. E sem o menor pudor ou vergonha, canta, com a voz denunciando um estado de loucura e embriaguez ao mesmo tempo, o seguinte verso:

- “Cadê o negão que roubou meu chapéu...”

Ainda bem, meus amigos, que o rapaz não arriscou o segundo verso. Alcione, certamente, ficaria uma fera se tivesse a certeza que o negão de tirar o chapéu que lhe despertou, um dia, os desejos mais primitivos, fosse o safado do ladrão que o bebum, numa noite de porre, acusou em plena sexta-feira de samba.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O DOIDO DE ESTIMAÇÃO DA MINHA RUA




Na minha rua tem um doido. Desses que você olha e diz sem medo de errar: “esse cara é doido”. Maltrapilho, o doido carrega, num saco de estopa desfiado, as roupas velhas rasgadas que veste no dia-a-dia, embora pareça vestir sempre a mesma coisa. Mas a característica principal que faz do doido um doido autêntico é a maneira como aborda alguém quando quer alguma coisa. Sempre gritando. No início, pensei que fosse apenas na casa da frente, onde mora uma velhinha moca. Com ela, realmente, é só no grito mesmo. Mas o ritual se repete em toda a vizinhança. E isso assusta o povo. Um dia desses, o doido veio pedir um copo d água aqui em casa. Minha vontade era de pegar um pau de dar em doido que Ana guarda lá na despensa.

Quando o vi pela primeira vez, enquanto o caminhão da mudança descarregava os móveis em casa, imaginei como devia ser Bob Marley quando decidiu deixar a cabeleira à vontade para seguir o rumo que quisesse. Aos poucos, fui percebendo que o doido é, na verdade, uma espécie de doido de estimação da rua. Ninguém mexe, ninguém diz nada e o doido também não reclama. O doido adotou a rua e a rua adotou o doido. Já dormiu em todas as calçadas, já pediu em todas as casas. E não pede dinheiro. Mas grita por água, sabonete e, principalmente, café. Às vezes passa uns três dias, até uma semana sem aparecer. Mas logo logo está de volta.

A última vez que fui ao teatro, assisti "Pobre de Marré", com Titina Medeiros e Quitéria Kely, e direção de Henrique Fontes. O roteiro segue a vida dessas pessoas que a gente chama, sem medo de errar, de doidos. Uma gente abandonada pela família, pelos governos, às vezes até por elas mesmas. Na trama, duas doidas de rua se encontram e inventam histórias uma para outra. É mais ou menos o que Cazuza costumava chamar de mentiras sinceras. Quem conta, acredita que está falando a verdade. Nunca falei com o doido da minha rua. Mas deve ser por aí.

Mas o meu doido de estimação não é a única figura estranha da minha rua. Quando nos mudamos, logo nos primeiros dias fui à caça de um buteco que vendesse cerveja. Descobri duas bodegas. Dessas que vendem tudo. Numa delas, onde a Skol é mais barata, manda um sujeito chamado Pedrão. O cara é grande. Olhos verdes bem arregalados, voz rouca e grossa. Ele também tem cara de doido. Mas esse acho que não: o Pedrão parece mesmo é com o Gigante da história do João e o Pé de Feijão.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

AS DUAS SENHAS

Lembro de uma das vezes em que fui com meu pai a um buteco em Ponta Negra. Era, na verdade, uma Cigarreira, instalada numa pracinha do Conjunto, uma região do bairro. A Cigarreira, mais pra frente falarei sobre isso mais aprofundadamente, é um dos símbolos do natalense. Assim como a Fortaleza dos Reis Magos, o Morro do Careca e Câmara Cascudo. Não há outro lugar do mundo em que uma banca que nasceu para ser de revistas tenha sido batizada de Cigarreira, mas seja, de fato e simplesmente, botequim.

Comandada no atendimento e na cozinha pelo Zezinho, grande figura humana, abcedista e rubro-negro, o buteco reunia uma clientela boa que segue firme em outros botequins que nasceram por ali depois que a prefeitura mandou acabar com a festa da turma do Zezinho. Desempregado, se uniu ao pai numa barraca na praia – que hoje a modernidade teima em chamar de quiosque – e desde então não tenho mais notícias da figura.

Mas o motivo dessas mal-traçadas foi uma situação vivida na Cigarreira do Zezinho. Lembro como se fosse hoje, até pelo susto da cena. Além do meu pai, haviam mais três ou quatro caras na mesa. E em cima dela, a mesma quantidade de cervejas, todas cheias. Achei aquilo estranho. Todos sentados à mesma mesa, conversando o mesmo papo, mas cada um bebendo sua gelada. Perguntei, depois, o porquê:

Por causa da conta. Dá problema. Sempre aparece um que não quer pagar no final, aí alguém se dá mal.

Vivendo e aprendendo. Na época, isso deve fazer uns sete anos, achei de uma frieza incrível. Como é que as pessoas se tratam assim logo num buteco, onde deveria ser justamente o contrário? Acabei sentindo na pele que, às vezes, é preciso frear a inocência e abrir o olho. Não é todo mundo, mas de tanto observar você acaba conhecendo os pilantras.

Na primeira ou segunda vez em que eu e Ana estivemos no bar de Nazaré, na Cidade Alta, chegaram duas figuras na mesa. O modus operandi é sempre o mesmo: o cara chega devagar, te cumprimenta como se fossem velhos amigos, fica um tempo em pé conversando até você, incomodado com aquela conversa de cima pra baixo, oferecer a cadeira. Os que têm o coração mole acabam soltando a senha:

- Vai um copinho?

Pronto. É o suficiente para o malandro se abancar e ir secando um copo atrás do outro. Se brincar, pede o cardápio e sugere alguma coisa para beliscar. Dessa vez, em Nazaré, não chegou a tanto. Eu que não escutei o conselho do meu pai e passei a calcular a conta com base nas cervejas que eu e Ana bebemos nem imaginava que tinha sido “o escolhido”. Por pouco tempo. Quando comecei a sentir que ia dar merda, já que um dos caras tinha saído dizendo que ia pegar não sei o quê não sei aonde fazia mais de quarenta minutos, sugeri que era hora de pedir a parcial. E essa, meus amigos, é a segunda senha. Você percebe que vai tomar um calote quando a figura se mexe na cadeira ou resolve olhar para trás como se procurasse desesperadamente um álibi. Aí quando não dá certo, o cara é capaz de desculpas como a que ouvi antes de morrer, sozinho, na conta daquela tarde:

- Preciso pegar meu filho na escola.

Depois dessa, comecei a sentir umas dores no pescoço quando vou ao Beco da Lama. Olhar para cima cansa, mas é aquela coisa: sai bem mais em conta.