O Centro Histórico absorve e preserva alguns personagens de fazer inveja a qualquer Machado de Assis. Uma dessas criaturas, que ainda não conheço como gostaria, o que deve acontecer em breve, é o seo Arnaldo.
Figura das mais simpáticas e excêntricas que já vi pelo meio dessas ruas do Centro, o cara é um passado de fidalguia. Quase todos os dias, desce a rua Letícia Cerqueira, onde moro há três meses, com um rádio negro daqueles gigantes com o volume lá em cima. A máquina é tão antiga que, pelo nível e a idade das canções que inundam a rua, parece inerte na primeira estação de rádio que seo Arnaldo sintonizou na vida.
Outro dia, quando corri para o portão assim que ouvi, mesmo de longe, a chegada de seo Arnaldo, um desses doidos de rua resolveu pegar carona no caminhada nostálgica do dono do rádio e disse para um vizinho que estava na janela, como se estivesse numa gafieira de antigamente:
- Bonito isso...
Definitivamente, ouvir serestões e boleros das décadas de 20, 30 e 40 em pleno Centro às quatro da tarde é para poucos. Como foi, para pouquíssimas pessoas, o diálogo que ouvi no dia em que conheci seo Arnaldo, ainda que ele não saiba até hoje da minha existência.
De saída do Beco da Lama, onde cobri as eleições da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjascências (SAMBA), em 2006, decidi aguardar o ônibus na avenida Ulisses Caldas. Poucas pessoas na parada. Entre elas, uma coroa simples que, até então, não havia chamado a atenção de ninguém. Até aparecer um senhor pra lá dos 70 anos com cara de personagem de desenho animado andando como se entre uma perna e outra coubessem dois passos, ao invés de um. Ao ver a coroa, o velho pára, passa-lhe uma cantada com o olhar e, então, acontece a seguinte conversa:
- Seo Arnaldo, como vai o senhor?
- Vou bem, dona Verônica. E a senhorita?
- Também. Passando por aqui?
- Passando, dona Verônica. Passando como passam as nuvens.
Pois é. Não preciso dizer mais nada.
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
BAR DO MÁRIO, UMA INSTITUIÇÃO
O cruzamento da avenida Jaguarari com a rua Segundo Wanderley, no Barro Vermelho, tem mais de 25 anos de história. É ali, sob o toldo que desce sempre que o sol devora o asfalto, que Mário comanda o buteco que herdou do sogro. Um lugar que, segundo ele, vendia de tudo. Tanto vendia que decidiu manter a essência ao batizar a casa de Bar e Mercearia do Mário. Uma grande homenagem, registre-se. E lá se vai um quarto de século desde que assumiu os trabalhos.
O ritmo, para quem já passou da casa dos 60, faz inveja a qualquer empresariozinho metido a entendedor do assunto. O buteco do Mário, simplesmente, não fecha. De segunda a segunda, no passo arrastado do dono do estabelecimento. No domingo, o portão de ferro da casa desce mais cedo, às 17h. Mas no restante da semana Mário vai ao sabor da freguesia.
Conheci o Mário num dia desses de semana. A idéia era preparar o terreno para o almoço. Mas o ambiente e a hospitalidade do anfitrião mereciam algumas boas horas de conversa. Pequeno, mas não apertado, o buteco é acolhedor. A fotografia de corpo inteiro do craque Marinho Chagas em dia de Botafogo e o escudo do Santos na prateleira denunciam a intimidade que Mário tem com o passado. Foi boêmio dos tempos da Ribeira, confessa. As imagens dos fregueses mais fiéis por todos os lados e em todas as paredes deixam claro aos marinheiros de primeira viagem que o buteco é de família.
O clima é provinciano. A certa altura do meio-dia, um amigo da casa salta do carro mal-estacionado rente a calçada do bar. Entra rápido, cumprimenta duas figuras que bebem próximo ao balcão, pede uma dose de cachaça, vira num gole só, paga e vai embora. A visita não durou dois minutos. O bastante, no entanto, para perceber a intimidade da freguesia.
Numa mesa próxima à nossa, Eliezer, um militar reformado da Marinha, vai puxando um assunto atrás do outro como se já bebêssemos na casa desde sua fundação. De futebol à pena de morte, a conversa de botequim só respeitava a hora sagrada do banheiro. Nisso, já tinham passado por ali um pintor de parede que parou para tomar UMA e outros dois sujeitos que também chegavam da lida e, ao contrário da gente, conseguiram fazer do buteco do Mário um ponto de passagem após algumas doses de cachaça.
A tarde já havia pedido licença quando entra no estabelecimento um senhor já a caminho dos 80 anos. Passos curtos, Souza se enturmou logo na conversa. E não demorou muito para apresentar seu lado poeta. Recitou três poemas assinados por ele e foi embora depois de duas cervejas.
Sozinho atrás do balcão, Mário observa tudo. Cena por cena. De lá, fala de futebol, boemia, vaticina que o grande defeito do amigo Eliezer é gostar muito de mulher e conta a história de como veio parar ali, a relação com o sogro e tal. Na hora da despedida, dez cervejas, seis pasteizinhos e um queijo de coalho depois de quando tudo começou e quando imaginávamos que só as estórias já tinham feito a tarde valer a pena, Mário surge com uma barra de chocolate Suflair, daquelas grandes, e antes de qualquer reação olha para Ana Paula, minha parceira de todas as horas, e diz absoluto:
- Esse aqui não é um presente meu, mas da INSTITUIÇÃO bar e mercearia do Mário. Espero que vocês voltem logo.
Eis a grande definição do buteco dita, assim, como manda o figurino, pelo dono do estabelecimento. O bar do Mário é uma INSTITUIÇÃO, como devem ser e são os botequins de verdade.
E é óbvio que voltaremos.
domingo, 23 de novembro de 2008
DO TEMPO EM QUE AS PINIQUEIRAS AINDA ERAM BESTAS
A vida passa devagar para o velho Pedro engraxate. Aos 63 anos, ele sobrevive do passo apertado das centenas de pares de sapato que vem e vão pela antiga Praça da Cocada, na rua João Pessoa, em pleno Centro de Natal. Hoje, a praça carrega outro nome: John Kennedy. Mas nem disso ele reclama. Também não fala mal do governo e muito menos da falta dos fregueses. Saudade mesmo o velho Pedro engraxate tem do tempo em que trabalhava como zelador nos dois mais tradicionais cinemas daquela região: os cinemas Nordeste e Rio Grande. Perdeu a conta de quantos filmes de faroeste e de guerra assistiu entre uma espanada e outra nas poltronas. Diz apenas que aquele era um tempo diferente:
- Naquele tempo as piniqueiras ainda eram bestas. Hoje você nem reconhece mais. Antes, não. Quando vinha uma você sabia que era piniqueira. Aí chamava para ver um filme e, depois, ia sarrar por aí. Mudou tudo. Antigamente a noite nas ruas do Centro só andava gato e cachorro. Agora tem muito vagabundo.
Quando pergunto da história de uma galega misteriosa que vendia os bilhetes no cinema Nordeste, ele prova o quão cruel é o tempo:
- Era a Eugênia. Mas ela hoje está só o bagaço.
Depois que deixou o cinema, Pedro nunca mais assistiu a um filme. Nem de faroeste nem de guerra:
- Para quê? Hoje passa tudo na televisão... e eu também não tenho mais paciência, não. Bom era o John Wayne. Gostava também da ‘Noviça Rebelde’, ‘E o vento levou...’, hoje perdeu a graça. Trabalhei dez anos no Cinema Nordeste e nove anos no Rio Grande. Era muito bom. Chegava às 6 horas da manhã e saía às 7 da noite pronto para tomar umas pingas.
O velho Pedro engraxate nunca brincou em serviço. O ponto fixo onde trabalha é prova. Há 19 anos, conseguiu junto à prefeitura a concessão de um caixote de madeira instalado em frente à estátua do ex-presidente dos EUA, John Kennedy. A indicação veio de Antônio, o amigo sapateiro que tomava conta do caixote ao lado. A oportunidade, no entanto, teve um preço. Biriteiro de primeira, Antônio escapava de vez em quando da labuta e deixava Pedro tomando conta do negócio. Veio o primeiro freguês, o segundo, o terceiro e as escapadas do amigo, que a essa altura já tinha virado colega, ficaram cada vez mais freqüentes. Se precisava de uma grana, Pedro sabia a quem e onde recorrer:
- Às vezes ele estava sem dinheiro para tomar uns caroço de pinga e eu dava só para poder tomar conta do ponto e tirar um dinheiro. Tinha dia que ele mesmo pedia. Aí vagou o ponto do lado e ele perguntou se eu não queria trabalhar ali. Fui à prefeitura e, como não tinha ninguém mesmo, eles me deixaram tomando conta.
O caixote do Pedro engraxate fica entre outros dois caixotes, todos azuis. No da esquerda, trabalha um coroa botafoguense. O outro, de Antônio, está vazio desde o dia 12 de março, quando Pedro perdeu o amigo.
Pedro teve se virar entre as perdas e conquistas da vida incerta que assumiu desde que deixou a roça em Caiçara, interior da Paraíba, onde nasceu e trabalhava com o pai, para vir morar em Natal:
- Não queria passar minha vida inteira na roça. Peguei minhas coisas e vim para Natal trabalhar na feira do Alecrim, na barraca de uma tia. Logo depois um primo meu disse que tinha uma vaga de zelador no cinema Rio Grande e fui trabalhar lá.
O velho Pedro engraxate, na verdade, queria mais. E confessa que o que mais conquistou, no Centro que o acolheu, foram amigos. Taxistas, engraxates, sapateiros, comerciantes, ambulantes. É feliz. Ainda que o Centro de que tenha mais saudade seja o do tempo em que as piniqueiras ainda eram bestas. E esse tempo, admite, não volta mais.

- Naquele tempo as piniqueiras ainda eram bestas. Hoje você nem reconhece mais. Antes, não. Quando vinha uma você sabia que era piniqueira. Aí chamava para ver um filme e, depois, ia sarrar por aí. Mudou tudo. Antigamente a noite nas ruas do Centro só andava gato e cachorro. Agora tem muito vagabundo.
Quando pergunto da história de uma galega misteriosa que vendia os bilhetes no cinema Nordeste, ele prova o quão cruel é o tempo:
- Era a Eugênia. Mas ela hoje está só o bagaço.
Depois que deixou o cinema, Pedro nunca mais assistiu a um filme. Nem de faroeste nem de guerra:
- Para quê? Hoje passa tudo na televisão... e eu também não tenho mais paciência, não. Bom era o John Wayne. Gostava também da ‘Noviça Rebelde’, ‘E o vento levou...’, hoje perdeu a graça. Trabalhei dez anos no Cinema Nordeste e nove anos no Rio Grande. Era muito bom. Chegava às 6 horas da manhã e saía às 7 da noite pronto para tomar umas pingas.
O velho Pedro engraxate nunca brincou em serviço. O ponto fixo onde trabalha é prova. Há 19 anos, conseguiu junto à prefeitura a concessão de um caixote de madeira instalado em frente à estátua do ex-presidente dos EUA, John Kennedy. A indicação veio de Antônio, o amigo sapateiro que tomava conta do caixote ao lado. A oportunidade, no entanto, teve um preço. Biriteiro de primeira, Antônio escapava de vez em quando da labuta e deixava Pedro tomando conta do negócio. Veio o primeiro freguês, o segundo, o terceiro e as escapadas do amigo, que a essa altura já tinha virado colega, ficaram cada vez mais freqüentes. Se precisava de uma grana, Pedro sabia a quem e onde recorrer:
- Às vezes ele estava sem dinheiro para tomar uns caroço de pinga e eu dava só para poder tomar conta do ponto e tirar um dinheiro. Tinha dia que ele mesmo pedia. Aí vagou o ponto do lado e ele perguntou se eu não queria trabalhar ali. Fui à prefeitura e, como não tinha ninguém mesmo, eles me deixaram tomando conta.
O caixote do Pedro engraxate fica entre outros dois caixotes, todos azuis. No da esquerda, trabalha um coroa botafoguense. O outro, de Antônio, está vazio desde o dia 12 de março, quando Pedro perdeu o amigo.
Pedro teve se virar entre as perdas e conquistas da vida incerta que assumiu desde que deixou a roça em Caiçara, interior da Paraíba, onde nasceu e trabalhava com o pai, para vir morar em Natal:
- Não queria passar minha vida inteira na roça. Peguei minhas coisas e vim para Natal trabalhar na feira do Alecrim, na barraca de uma tia. Logo depois um primo meu disse que tinha uma vaga de zelador no cinema Rio Grande e fui trabalhar lá.
O velho Pedro engraxate, na verdade, queria mais. E confessa que o que mais conquistou, no Centro que o acolheu, foram amigos. Taxistas, engraxates, sapateiros, comerciantes, ambulantes. É feliz. Ainda que o Centro de que tenha mais saudade seja o do tempo em que as piniqueiras ainda eram bestas. E esse tempo, admite, não volta mais.
A COMPANHIA DE UM PAULISTA
Encontrei Nelson Rodrigues num buteco de São Paulo. Próximo ao cruzamento da histórica rua Maria Antônia, onde aconteceu o famoso quebra-pau entre a turma do Makenzie e os canalhas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) na ditadura, com a avenida da Consolação. Foi em 2003. Era minha primeira vez na terra da garoa. Enviado pelo editor de esportes da TV Universitária na época, Fernando Amaral, fui cobrir a participação da UFRN nos Jogos Universitários Brasileiros (JUB´s). Viagem de ônibus, 54 horas de chão.
Depois da primeira maratona (falo da viagem e não da modalidade), fomos acomodados em dois hotéis. O meu e de boa parte da delegação ficava exatamente no cruzamento da Maria Antônia com a Consolação. Ao lado, o buteco que me cativou logo pelo cartaz de Antarctica, que indicava o preço do ouro a R$ 1,75. Confesso: na verdade, era uma padaria. Eis a primeira constatação da minha impressão de Sampa: buteco de paulista é padaria. É curioso, mas não tem erro. Quase toda padaria de São Paulo tem um balcão enorme em U onde a freguesia se abanca naqueles tamburetes de ferro redondos presos ao chão. E tome pastelzinho, lombinho e, claro, cerveja. Pela manhã, até que o negócio funciona como padaria. Mas é só o cinza do céu de São Paulo ganhar o preto para virar um buteco.
As três noites que passei em São Paulo foram três noites ‘hospedado’ no buteco. Saía para o trabalho de manhã, com destino ao Ibirapuera, e voltava no fim da tarde para o hotel. Era banho, uma enganada no estômago e Antarctica. Tudo temperado com um friozinho que não matava ninguém (só no último dia os 8 graus de temperatura encerraram mais cedo os trabalhos).
Foi nesse buteco sem nome que encontrei Nelson Rodrigues. E já na primeira noite. Tímido, cheguei pianinho. Pedi uma Antarctica e fui brindando, comigo mesmo, a primeira cerveja na terra da garoa. Ao meu lado, um coroa. Pra lá dos 50 anos. Sisudo, cara de pouquíssimos amigos. Cigarro Hollywood numa das mãos e um copo na outra. O bigode grosso amarelado anunciava os anos idos de nicotina. Ficamos os dois dividindo a quina do balcão. Em pé, acomodados na calçada da rua Maria Antônia. Ameacei uma conversa, sem sucesso. Olhava meio de lado depois de um gole ou outro, sem retorno. Além de nós dois, havia um velho xavecando uma coroa na parte do balcão que dava para a porta da cozinha, além de outros figurantes. A cena de um autêntico botequim.
Eu já ia na quarta Antarctica e só falava com o garçom na hora de pedir mais uma. Minhas idéias começavam a embaralhar quando notei que tudo aquilo era o óbvio ululante:
- A pior solidão do mundo é a companhia de um paulista.
Nelson Rodrigues desceu na hora como um gole gelado e bem tomado. Não Havia outra explicação. Estava eu, ali, vivendo uma das frases mais geniais e certeiras do cronista tricolor. Pedi mais uma, ofereci a saideira a Nelson, e olhei, dessa vez, o paulista de frente. O ar, agora, era de vitória. A conta veio em seguida com a turma da casa já querendo descer o portão de ferro, outro símbolo que faz da padaria um buteco paulista de verdade. Estava realizado. Numa só noite, quatro momentos históricos: tomei minha primeira cerveja em São Paulo, descobri que buteco de paulista é padaria, conheci um paulista de verdade e constatei naquela noite que Nelson é um visionário: não há pior solidão no mundo que a companhia de um paulista.
O detalhe é que no dia seguinte, depois de um recomeço igualmente gelado, eu e o coroa, que bate ponto todos os dias no buteco, iniciamos um bom papo, como acontece em todos os butecos de verdade. Me ensinou até como chegar no Teatro Municipal. Em poucos minutos, o ambiente mudou, a imagem fria se dissolveu nas Antarcticas que foram descendo uma atrás da outra, outro coroa entrou na conversa e até um catador de latas amigo da turma, que gentilmente aceitou meu convite para uma cerveja e, lá pelas tantas disse que meu lugar era em São Paulo, apareceu naquele fim de noite.
Emocionado, me veio, de novo, Nelson na idéia. Aqueles momentos, pensei, provavam que a companhia de um paulista não é assim tão solitária. Então, tinha alguma coisa errada. A última coisa de que me lembro, antes de apagar na cama do quarto no hotel da esquina, foi Nelson olhando para minha cara:
- Meu jovem, toda unanimidade é burra!
Depois da primeira maratona (falo da viagem e não da modalidade), fomos acomodados em dois hotéis. O meu e de boa parte da delegação ficava exatamente no cruzamento da Maria Antônia com a Consolação. Ao lado, o buteco que me cativou logo pelo cartaz de Antarctica, que indicava o preço do ouro a R$ 1,75. Confesso: na verdade, era uma padaria. Eis a primeira constatação da minha impressão de Sampa: buteco de paulista é padaria. É curioso, mas não tem erro. Quase toda padaria de São Paulo tem um balcão enorme em U onde a freguesia se abanca naqueles tamburetes de ferro redondos presos ao chão. E tome pastelzinho, lombinho e, claro, cerveja. Pela manhã, até que o negócio funciona como padaria. Mas é só o cinza do céu de São Paulo ganhar o preto para virar um buteco.
As três noites que passei em São Paulo foram três noites ‘hospedado’ no buteco. Saía para o trabalho de manhã, com destino ao Ibirapuera, e voltava no fim da tarde para o hotel. Era banho, uma enganada no estômago e Antarctica. Tudo temperado com um friozinho que não matava ninguém (só no último dia os 8 graus de temperatura encerraram mais cedo os trabalhos).
Foi nesse buteco sem nome que encontrei Nelson Rodrigues. E já na primeira noite. Tímido, cheguei pianinho. Pedi uma Antarctica e fui brindando, comigo mesmo, a primeira cerveja na terra da garoa. Ao meu lado, um coroa. Pra lá dos 50 anos. Sisudo, cara de pouquíssimos amigos. Cigarro Hollywood numa das mãos e um copo na outra. O bigode grosso amarelado anunciava os anos idos de nicotina. Ficamos os dois dividindo a quina do balcão. Em pé, acomodados na calçada da rua Maria Antônia. Ameacei uma conversa, sem sucesso. Olhava meio de lado depois de um gole ou outro, sem retorno. Além de nós dois, havia um velho xavecando uma coroa na parte do balcão que dava para a porta da cozinha, além de outros figurantes. A cena de um autêntico botequim.
Eu já ia na quarta Antarctica e só falava com o garçom na hora de pedir mais uma. Minhas idéias começavam a embaralhar quando notei que tudo aquilo era o óbvio ululante:
- A pior solidão do mundo é a companhia de um paulista.
Nelson Rodrigues desceu na hora como um gole gelado e bem tomado. Não Havia outra explicação. Estava eu, ali, vivendo uma das frases mais geniais e certeiras do cronista tricolor. Pedi mais uma, ofereci a saideira a Nelson, e olhei, dessa vez, o paulista de frente. O ar, agora, era de vitória. A conta veio em seguida com a turma da casa já querendo descer o portão de ferro, outro símbolo que faz da padaria um buteco paulista de verdade. Estava realizado. Numa só noite, quatro momentos históricos: tomei minha primeira cerveja em São Paulo, descobri que buteco de paulista é padaria, conheci um paulista de verdade e constatei naquela noite que Nelson é um visionário: não há pior solidão no mundo que a companhia de um paulista.
O detalhe é que no dia seguinte, depois de um recomeço igualmente gelado, eu e o coroa, que bate ponto todos os dias no buteco, iniciamos um bom papo, como acontece em todos os butecos de verdade. Me ensinou até como chegar no Teatro Municipal. Em poucos minutos, o ambiente mudou, a imagem fria se dissolveu nas Antarcticas que foram descendo uma atrás da outra, outro coroa entrou na conversa e até um catador de latas amigo da turma, que gentilmente aceitou meu convite para uma cerveja e, lá pelas tantas disse que meu lugar era em São Paulo, apareceu naquele fim de noite.
Emocionado, me veio, de novo, Nelson na idéia. Aqueles momentos, pensei, provavam que a companhia de um paulista não é assim tão solitária. Então, tinha alguma coisa errada. A última coisa de que me lembro, antes de apagar na cama do quarto no hotel da esquina, foi Nelson olhando para minha cara:
- Meu jovem, toda unanimidade é burra!
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