Encontrei Nelson Rodrigues num buteco de São Paulo. Próximo ao cruzamento da histórica rua Maria Antônia, onde aconteceu o famoso quebra-pau entre a turma do Makenzie e os canalhas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) na ditadura, com a avenida da Consolação. Foi em 2003. Era minha primeira vez na terra da garoa. Enviado pelo editor de esportes da TV Universitária na época, Fernando Amaral, fui cobrir a participação da UFRN nos Jogos Universitários Brasileiros (JUB´s). Viagem de ônibus, 54 horas de chão.
Depois da primeira maratona (falo da viagem e não da modalidade), fomos acomodados em dois hotéis. O meu e de boa parte da delegação ficava exatamente no cruzamento da Maria Antônia com a Consolação. Ao lado, o buteco que me cativou logo pelo cartaz de Antarctica, que indicava o preço do ouro a R$ 1,75. Confesso: na verdade, era uma padaria. Eis a primeira constatação da minha impressão de Sampa: buteco de paulista é padaria. É curioso, mas não tem erro. Quase toda padaria de São Paulo tem um balcão enorme em U onde a freguesia se abanca naqueles tamburetes de ferro redondos presos ao chão. E tome pastelzinho, lombinho e, claro, cerveja. Pela manhã, até que o negócio funciona como padaria. Mas é só o cinza do céu de São Paulo ganhar o preto para virar um buteco.
As três noites que passei em São Paulo foram três noites ‘hospedado’ no buteco. Saía para o trabalho de manhã, com destino ao Ibirapuera, e voltava no fim da tarde para o hotel. Era banho, uma enganada no estômago e Antarctica. Tudo temperado com um friozinho que não matava ninguém (só no último dia os 8 graus de temperatura encerraram mais cedo os trabalhos).
Foi nesse buteco sem nome que encontrei Nelson Rodrigues. E já na primeira noite. Tímido, cheguei pianinho. Pedi uma Antarctica e fui brindando, comigo mesmo, a primeira cerveja na terra da garoa. Ao meu lado, um coroa. Pra lá dos 50 anos. Sisudo, cara de pouquíssimos amigos. Cigarro Hollywood numa das mãos e um copo na outra. O bigode grosso amarelado anunciava os anos idos de nicotina. Ficamos os dois dividindo a quina do balcão. Em pé, acomodados na calçada da rua Maria Antônia. Ameacei uma conversa, sem sucesso. Olhava meio de lado depois de um gole ou outro, sem retorno. Além de nós dois, havia um velho xavecando uma coroa na parte do balcão que dava para a porta da cozinha, além de outros figurantes. A cena de um autêntico botequim.
Eu já ia na quarta Antarctica e só falava com o garçom na hora de pedir mais uma. Minhas idéias começavam a embaralhar quando notei que tudo aquilo era o óbvio ululante:
- A pior solidão do mundo é a companhia de um paulista.
Nelson Rodrigues desceu na hora como um gole gelado e bem tomado. Não Havia outra explicação. Estava eu, ali, vivendo uma das frases mais geniais e certeiras do cronista tricolor. Pedi mais uma, ofereci a saideira a Nelson, e olhei, dessa vez, o paulista de frente. O ar, agora, era de vitória. A conta veio em seguida com a turma da casa já querendo descer o portão de ferro, outro símbolo que faz da padaria um buteco paulista de verdade. Estava realizado. Numa só noite, quatro momentos históricos: tomei minha primeira cerveja em São Paulo, descobri que buteco de paulista é padaria, conheci um paulista de verdade e constatei naquela noite que Nelson é um visionário: não há pior solidão no mundo que a companhia de um paulista.
O detalhe é que no dia seguinte, depois de um recomeço igualmente gelado, eu e o coroa, que bate ponto todos os dias no buteco, iniciamos um bom papo, como acontece em todos os butecos de verdade. Me ensinou até como chegar no Teatro Municipal. Em poucos minutos, o ambiente mudou, a imagem fria se dissolveu nas Antarcticas que foram descendo uma atrás da outra, outro coroa entrou na conversa e até um catador de latas amigo da turma, que gentilmente aceitou meu convite para uma cerveja e, lá pelas tantas disse que meu lugar era em São Paulo, apareceu naquele fim de noite.
Emocionado, me veio, de novo, Nelson na idéia. Aqueles momentos, pensei, provavam que a companhia de um paulista não é assim tão solitária. Então, tinha alguma coisa errada. A última coisa de que me lembro, antes de apagar na cama do quarto no hotel da esquina, foi Nelson olhando para minha cara:
- Meu jovem, toda unanimidade é burra!
6 comentários:
Faltou dizer que Leão Lobo foi apresentado ao jornalista "baiano" como um grande jornalista. Ou seja, se já dá solidão estar ao lado de um paulista, imagina saber que para eles nada mais existe ao redor do próprio umbigo.
Deixando as pendengas de lado. Tenho certeza que vc entraria com mais rapidez em um cenário de um típico buteco da minha terrinha.
Ana: precisamos testar, juntos, a hospitalidade de um botequim carioca.Tenho a impressão que vai dar samba.
Sobre Leão Lobo, é verdade. O coroa me apresentou o figura. Simpático. Nada mais a declarar. Beijo.
É Rafa! Vc me fez viajar um pouco no tempo! Uma das primeiras vezes em que fui apresentado a uma boa "birita" foi numa padaria paulista... lá se vão uns 16 anos...
Mas é verdade, São Paulo é assim mesmo. Pra gostar tem que compreender o seu povo, e saber garimpar boas amizades. Mesmo com todas as dificuldades impostas pela minha terrível timidez, consegui algum êxito no período em que morei na "Terra da Garoa". Gosto muito de lá, chego a ter saudades, mas não trocaria por minha Natal.
Grande abraço!
Armando, alguns poucos minutos num botequim de verdade, daqueles que a gente sabe como é, são suficientes para essas viagens no tempo. Salve as padarias de São Paulo!! Abraço
Rafael... eis aí, ou melhor, aqui, mais uma vantagem em te conhecer: compartilhar das tuas viagens pelo espaço cibernético. O texto é maravilhoso. Desce macio como uma gelada no buteco do peito, junto com um grupo de bons companheiros.
Parabéns!!!
Seja bem chegada ao meio dessa rua de butecos Divanice! Valeu pelos elogios e olha que eu nem escrevi nada ainda daquelas greves da UFRN! MAs uma hora sai. abraço!
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