quarta-feira, 17 de março de 2010

ESPERANÇAS PERDIDAS


Ainda morava em Brasília quando o estudante Marco Antônio Velasco foi espancado até a morte por uma gangue de adolescentes que se fazia conhecer na cidade pelo medo cultuado através de arrastões violentos nas quadras da Capital Federal e do próprio nome de batismo do grupo: Falange Satânica. Corria o ano de 1993. Estudava numa escola pública com o primo do rapaz morto que devia ter minha idade.

Na memória também permanece o fato de que depois que os sete assassinos foram apresentados à sociedade pela imprensa, meu melhor amigo ficou em estado de choque. Dois deles fizeram parte de sua infância. Amigos de correr debaixo do bloco, jogar bola e corrida de tampinha, três das atividades mais concorridas que faziam a cabeça das crianças de classe média de Brasília naqueles tempos pós-ditadura militar.

Na minha cidade sem esquina marcada pelo concreto dos prédios de seis andares das superquadras, a segunda metade dos anos 80 e a década de 90 foram das gangues. Em quase toda a quadra, como são chamadas popularmente os quarteirões formados por vários prédios, havia um grupo de marginais.

A 306 Norte era o habitat da ‘Ratos Noturnos da Seis’ e a ‘Falange Satânica’ delimitava sua área entre a 405 e 406 Norte, onde moravam meus avós paternos e cresceu meu pai. Já a temida 312 Norte, onde vivi até os 12 anos de idade, era conhecida entre a molecada como ‘A Galera da Doze’, e assim por diante.

Cada quadra era como um território inimigo, um campo de concentração. Para atravessar de um lado para outro a pé, só com uma desculpa boa ou uma visita marcada num dos apartamentos dos blocos. Perdi a conta das vezes em que tive que desviar o caminho para chegar aonde queria.



Nunca entendi aquela violência estúpida embora tenha convivido com ela, principalmente na época da 312. Um dia, devia ter uns dez anos, desci depois do almoço para jogar bola com um amigo no gramado em frente ao bloco. Um chutava, o outro defendia. As traves marcadas com os chinelos. Em pouco tempo apareceram oito caras, bem mais velhos, fizeram uma roda, e mandaram que nós dois saíssemos no tapa. Simples assim. Hesitei, disse que não queria, iniciei um choro amarrado, mas não teve jeito. Se não obedecêssemos, apanhariam os dois. E de oito.

Meu amigo entrou logo na pilha, talvez até como instinto de sobrevivência, jogou a bola para o lado e partiu para cima. Ainda me acertou uns três socos que pegaram de raspão no braço e perto do rosto. Na volta, minha mão fechada pegou em cheio o nariz do garoto. O sangue correu na mesma velocidade e proporção do choro de dor e de raiva que saíam das duas criaturas entrando na adolescência que não queriam nada mais que bater bola enquanto os pais não voltavam do trabalho. A turma ria vendo a cena. Ainda ergueram meu braço direito como um lutador de vale-tudo que acabara de arrasar o inimigo. Fui elogiado e tudo pelo golpe. Talvez seja por isso que hoje não considere esporte o boxe e muito menos o vale-tudo.

Eram dias estranhos, sem dúvida. Já naquela época, assistia na TV especialistas explicarem as causas dessas gangues. Diziam que não tínhamos espaço para lazer e, por isso, a juventude era obrigada a queimar a energia acumulada de alguma forma. As brigas, eram portanto, um escape. Fui crescendo, vi amigos que jogavam bola com a turma entrando e até formando novas gangues, mas no fim o destino tratou de separar os caminhos paralelos que nunca se encontrariam, mas naquela época viviam e conviviam no mesmo lugar.

Não sou especialista no assunto como os caras da TV que eu via na adolescência, mas nem por isso acredito que o que faltava era espaço. Até porque tínhamos uma quadra de cimento rachado, um campo de areia vagabundo, parquinho e até uma barra e duas paralelas para quem quisesse malhar no meio da rua. Os generalistas, esse engodo da sociedade que usa a mesma desculpa para tudo no Brasil, vai dizer que falta é política pública. Poderiam ser mais diretos.

Lembrei dessa história vendo a polêmica criada em torno da amizade do Adriano e do Vágner Love, o Império do Amor do Flamengo, com traficantes do Rio. Os dois nasceram na favela, um lugar marginalizado que, tal qual nas quadras de classe média de Brasília, abraçam o pai de família, o garoto que só quer saber de jogar bola e os marginais. Adriano e Vágner Love cresceram rodeados de gente boa, de gente boa que virou gente ruim, de gente ruim que virou gente boa e de gente ruim por natureza. É assim em todo canto.



Voltei no tempo e lembrei do choque que meu melhor amigo sentiu quando viu os dois amigos de infância presos por espancarem até a morte o estudante Marco Antônio Velasco. Perguntei o que havia mudado para ele em relação ao sentimento daquele tempo:

- Nada, ele respondeu.

Se eu voltasse para Brasília hoje, depois de 11 anos, também iria atrás dos meus amigos, independente do que estejam fazendo. A hipocrisia e o moralismo dessa gente que, de forma covarde, chama o Adriano e Vágner Love de marginais por conta das amizades de moleque é cruel e preconceituosa.

Quem sabe a explicação disso tudo esteja nos primeiros versos de ‘Esperanças Perdidas’, o samba interpretado magistralmente pelo mito Roberto Ribeiro. Não sou especialista, mas pode ser por aí:

Quantas belezas deixadas nos cantos da vida
Que ninguém quer e nem mesmo procura encontrar
E quando os sonhos se tornam esperanças perdidas
Que alguém deixou morrer sem nem mesmo tentar’


Até!

PS: Como bem corrigiu meu guru do samba, Armando Miranda, 'Esperanças Perdidas' não foi gravada pelo grande Roberto Ribeiro. A composição, de Délcio Carvalho, ganhou voz com o Originais do Samba

7 comentários:

Armando Miranda disse...

Belo texto, Rafael.

Só um detalhe: "Esperanças Perdidas" é uma composição de Délcio Carvalho, e foi um grande sucesso com "Os Originais do Samba". O nosso grande Demerval infelizmente não chegou a gravá-la.

Abraço!

Ana Paula Costa disse...

Ainda dá tempo...

Tubular triciclo super disse...

Até Jesus comeu com agiotas, ladrões e próstitutas e ñ foi crucificado por isso!
Centenas de pessoas estavam na quele baile, rosto que também foram filmados. Porque só os famosos?!
Milhares de famílias recebem sextas básicas de traficantes e outros cuidados, mas ninguém é questionado por isso! porque será essa celeuma todinha?!.

Rafael Duarte disse...

Carlos, a pergunta é justamente essa! A mídia preconceituosa ficou evidente nesse caso. Adriano e Love são negros que cresceram na favela. Mas isso a gente sabe que a nossa sociedade hipócrita não aceita. Abraços

Armando Miranda disse...

Rafael, eu tô mais pra "guri" do samba!
kkkk

Abração!

Luiz Filipe disse...

Ola Rafael, meu nome é Luiz filipe, sou estudante de ciências sociais na Unb e citei parte do seu texto em uma pesquisa. Pro meu TCC, em determinada parte dele, pretendo falar sobre as gangues em Brasilia na década de 90, haveria algum email para que eu pudesse entrar em contato ?

Allan Gontijo disse...

Parabéns pelo Post cara! Sou dessa geração Tb! Existiam outros grupos igualmente famosos! Enfim! Valeu!